quinta-feira, fevereiro 19, 2004

(tran)Escrevo

Imaginem que sou empregado de escritório, um pequeno burguês calafetado cuja existência foi de súbito invadida pela peste. Volto sempre ao mesmo. Esta ideia da peste não me sai da cabeça. podem supor o que era a minha vida. O trabalho, as noites no café ou no cinema, um livro, a visita a um prostíbulo. Vida sem imaginação, não é? Pois bem, estive preso durante um mês. Não é muito. agora parece-me que já não poderei ter qualquer espécie de esperança. Sento-me neste bar e embebedo-me. Preciso estar bêbedo. Vejo os vestidos vermelhos e azuis das raparigas escoando-se por entre as mesas. Toca-se uma música lancinante. Gosto deste bar. Atordoa-me. O espelho mostra-me um olhar aflito. Levanto o copo coma mão hesitante, saúdo-me. Noto perfeitamente a minha mediocridade. Uma bebida dolorosa, um pouco repugnante, não?
- Pagas-me uma bebida? – Um vestido encarnado sobe pelo meu lado esquerdo. É bem suja esta vidinha, meus amigos.

Herberto Helder (1930)
Os Passos em Volta

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